Vidas Secas
☼Contextualização Histórica
Os abalos sofridos pelo povo brasileiro em torno dos
acontecimentos de 1930, a crise econômica provocada pela quebra da bolsa de
valores de Nova Iorque, a crise cafeeira, a Revolução de 1930, o acelerado
declínio do nordeste condicionaram um novo estilo ficcional, notadamente mais
adulto, mais amadurecido, mais moderno que se marcaria pela rudeza, por uma
linguagem mais brasileira, por um enfoque direto dos fatos, por uma retomada do
naturalismo, principalmente no plano da narrativa documental, temos também o
romance nordestino, liberdade temática e rigor estilístico.
Os romancistas de 30 caracterizavam-se por adotarem visão
crítica das relações sociais, regionalismo ressaltando o homem hostilizado pelo
ambiente, pela terra, cidade, o homem devorado pelos problemas que o meio lhe
impõe.
☼Estudo dos personagens
Os personagens da história são portadores de total
relevância no processo de construção da narrativa. Cada um deles, com suas
particularidades, são apresentados em
capítulos diferentes, sem com isso, quebrar a linearidade da trama. Eles
representam pessoas sofridas que, na sua simplicidade, retratam o descaso
social evidente na sociedade brasileira. Fabiano é o homem de aspecto
animalizado “lançou de novo aquele som gutural”, tanto pela sua condição de
analfabeto, quanto pela sua afinidade com o elemento da natureza “Montado,
confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele.” Fabiano, por ser um homem sem
instrução, é vítima de todo tipo de exploração, a começar pelo patrão, que lhe
toma quase todo o dinheiro na hora em que está negociando a compra do gado;
depois, vem o episódio do soldado amarelo que, num abuso de autoridade o prende
sem nenhum critério.
A situação difícil de Fabiano o conduzia a uma espécie de
degradação humana, o que o tornava num ser objeto, sem nenhuma importância
“Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido quando menos
esperasse.” Além disso, ele não se aproximava dos homens, pois tinha
dificuldades de se expressar, fato que o fazia sentir-se inferior aos outros.
Por outro lado, mesmo negando a sua condição humana “você é um bicho,
Fabiano.”, possui um desejo forte e poderoso, que é o de viver, na sua
inocência.
Sinhá Vitória é um exemplo de resignação e esperança.
Vive perdida em pensamentos que se confundem com o real e o imaginário,
aceitando com paciência a realidade que lhe é imposta pela vida. Enquanto
aguarda uma oportunidade de melhorar sua condição social, procura orientar seu
marido, Fabiano, a fim de que ele não seja explorado, principalmente pelo
proprietário da fazenda, sendo por isso, sua fonte de apoio, porém sem muito
efeito, pois a necessidade fazia de Fabiano um homem subordinado e impotente
diante da situação em que se encontra. O que a motivava era a fé em Deus e a
vontade de conseguir a tão sonhada cama de lastro de couro, que representava
para ela a possibilidade de ser gente “Não podiam dormir como gente”.
Enquanto Fabiano oscila entre sua condição de homem e de
animal, Sinhá Vitória assume a liderança em relação ao rumo que a família deve
tomar e decide a hora de partirem do local onde se encontram por não achar ali
meios de sobrevivência. Daí ela ser vista por seu esposo como o “único ser que
o compreendia”. Sinhá Vitória é, portanto, a mulher que sofre, que reza, que em
determinados momentos fraqueja, mas que não deixa a ternura de mãe e de esposa
sair do coração.
Os filhos do casal simbolizam a inocência e a solidão. O
menino mais novo admira o pai e procura imitá-lo. Essa fantasia torna os
pensamentos confusos, revelando a busca de uma identificação com o pai,
Fabiano. Por outro lado, falta de interlocutores para que ele pudesse falar das
suas aventuras o deixava chateado e triste, o que confirmava a solidão que
sentia: “Não descobrindo neles nenhum sinal de solidariedade (...). Achou-se
abandonado e mesquinho, exposto a quedas e marradas.” Nesse sentido, a
incomunicabilidade passa a ser uma marca da família retirante, tanto pela
inocência dos meninos que tudo desconheciam, quanto pela ausência de um vocabulário
mínimo que lhes desse condição de diálogo: “Provavelmente aquelas coisas tinham
nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos (...). Como podiam os
homens guardar tantas palavras?”
O menino mais velho, no entanto, já demonstrava uma certa
curiosidade, tentando, talvez, compreender e contextualizar algumas expressões desconhecidas, como no
momento em que tenta entender o significado da palavra inferno. Para isso, recorre ao pai, que lhe
ignora a pergunta. Sem êxito, dirige-se à mãe, de quem recebe informações
insuficientes sobre o que saber. Sinhá
Vitória talvez não soubesse de fato o que era realmente “inferno”. Com a
insistência do menino, ela irrita-se e o agride, cerceando assim o direito ao
conhecimento. Isso caracteriza a condição de seres passivos dentro do contexto
social e a aproximação com o mundo anima representado na figura de Baleia. Outros
personagens: o soldado, seu Inácio (dono do bar).
O Soldado amarelo
e seu Tomás da Bolandeira são dois personagens que estão nos extremos da escala
cultural. O primeiro simboliza a arbitrariedade restrita ao uso de uma farda,
que lhe dá a condição de representante da Justiça, porém sem nenhum mérito para
fazê-lo. O Soldado, no uso de suas “atribuições” conferidas pelo governo,
tripudia sobre as pessoas indefesas, entre as quais Fabiano, que depois de
insultado por ele, foi preso inocentemente. O outro, seu Tomás da Bolandeira,
representa um referencial para o marido de Sinhá Vitória não só na perspectiva
de um homem poderoso e humilde, como também cultural, já que tratava de uma
pessoa esclarecida, “porque lia demais”. Nesse sentido, ele passava a ser, para
Fabiano, uma espécie de modelo que o oprime, mas o encanta, por ser um homem
bom e lido. “Em horas de maluqueira, Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras
difíceis, truncando tudo...” Tomás da Bolandeira é, pois, uma pessoa que, sem
querer, inferioriza Fabiano, não enquanto ser humano, mas do ponto de vista
cultural.
Se por um lado vê-se uma família que se degrada chegando
à condição de animal, por outro, nota-se um animal que parece humanizar-se.
Baleia, muitas vezes, solidariza-se com os retirantes, como no momento em que
matou o preá e não comeu sozinha, entregou-o a Fabiano.
Baleia, em Vidas Secas, parece possuir “alma” que partindo deste mundo “Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme (...). O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes”. Por isso pode ser considerada uma personagem que transcende os limites de um simples cão. Ela assume a função de um ser que pensa e que possui a esperteza de homem “O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou.” A relevância atribuída à cachorra Baleia simboliza o reconhecimento de um ser que, ora animal, ora criança, tematiza o lirismo presente no romance.
☼ Estudo da linguagem
O romance possui uma linguagem compatível com todo o processo de construção do texto: desde sua adequação às situações expressas no contexto, até o nível de fala dos seus personagens. As frases curtas traduzem a objetividade do autor em expressar a seca em vive o sertão nordestino. “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.” Nota-se ainda uma consonância entre linguagem e nível sócio-cultural, que se evidencia na forma como é reproduzida a fala de Fabiano, sem nenhuma instrução, não se comunica através de frases desenvolvidas, mas de expressões monossilábicas: “Fabiano, que não esperava semelhante desatino, apenas grunhia: - Hum! Hum!” Como uma forma de trazer à tona os sentimentos e anseios de seus personagens, o autor faz uso do discurso indireto livre, recurso que possibilita as falas em forma de “flash” no meio da narrativa: “Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato.” O pequeno número de adjetivos empregados na caracterização do ambiente e dos personagens, não só mostram imagens vivas de cada situação, como também exteriorizam o estado de espírito dos protagonistas: “Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.” Nesse sentido, linguagem e contexto estão intimamente ligados, buscando expressar clara e objetivamente a realidade de muitos que vivem como Fabiano e sua família.
Tipo de discurso: indireto livre
Foco narrativo: terceira pessoa
Adjetivos figuras de linguagem:
Metáfora: “- você é um bicho, Fabiano".
Prosopopéia: compara Baleia como gente
☼Tempo
O tempo no romance se conflui numa perspectiva de presente e futuro condicional, quando tudo para a família é baseado em hipóteses. Os protagonistas vivem um presente de dificuldades e sonham com um futuro que não oferece nenhuma garantia de melhores condições de vida. É um tempo que não se percebe passar, que parece tornar perene o estado de calamidade vivida pelos retirantes. Em determinado momento na história, o autor faz uso da prolepse, procurando antecipar o destino dos filhos de Fabiano e Sinhá Vitória, se bem que não seja um futuro promissor, mas uma repetição daquilo que os pais são no momento presente “Quando crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível, seriam pisados, maltratados, machucados, por um soldado amarelo.” Trata-se, portanto, de um tempo psicológico, que não tem presa de passar.
☼Espaço
A maior parte da história se passa na caatinga, que funciona cimo um dos agentes causadores das más condições de vida por que passa Fabiano e sua família. Trata-se de um lugar árido e inóspito, que, aliado à seca, não oferecia meios de sobrevivência, o que fazia com que os retirantes continuassem numa mudança constante, caracterizando assim, um aspecto circular na obra, já que a história começa com a MUDANÇA da família e termina com a FUGA: a família deixa o lugar onde está na tentativa de se estabelecer na vida.
A história é contada por um narrador heterodiegético, que parece estar em todos os lugares ao mesmo tempo, inclusive no interior de algumas das personagens, externando a angústia e os anseios de cada um deles, o que caracteriza uma onisciência seletiva: “O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça.” Nesse caso, observa-se ainda um narrador que mantém uma relação transcendente aos limites entre narrador/personagem. Em Vidas Secas, esse narrador vivencia cada momento da vida dos retirantes e parece sofrer com eles: “Por que tinham feito aquilo? Era o que não podia saber. Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso(...)Assim um homem não podia resistir.” É , portanto, um narrador que, mesmo de fora na construção da história, está muito próximo de cada um dos personagens , ou seja, há uma relação narrador/personagens indissolúvel e amistosa entre um e outro.
☼Comentário Crítico:
Esse livro retrata fielmente a realidade brasileira não só da época em que o livro foi escrito, mas como nos dias de hoje tais como injustiça social, miséria, fome, desigualdade, seca, o que nos remete a idéia de que o homem se animalizou sob condições sub-humanas de sobrevivência.
☼Resumo da Obra:
O romance “Vidas Secas” narra o episódio de uma família de retirantes em busca de um lugar que lhes ofereça meios de melhorar suas condições de vida. Essa família é composta por Fabiano, homem humilde e trabalhador; Sinhá Vitória, esposa resignada e fiel; o Menino mais novo e o Menino mais velho, crianças inocentes, representantes do anonimato social ; além da cachorra Baleia, animal que se humaniza em relação à dura realidade por que passa Fabiano e sua família. Durante um longo percurso por um caminho que parece interminável, os personagens enfrentam atrocidades várias, entre as quais, a fome, a sede e a falta de um lugar onde pudessem se estabelecer. Depois de andarem muito, os retirantes encontram uma casa que parecia abandonada. Eles se aproximam e entram nela, mas logo chega o dono, para quem Fabiano, depois de oferecer seus préstimos, começa a trabalhar, sendo vítima da seca, sua maior antagonista, e da exploração por parte do proprietário das terras. Na fazenda, a família permanece por algum tempo, cuidando do rebanho do proprietário até que, desiludidos com o aparecimento das arribações que, para eles “eram coisas da seca”, deixam a fazenda numa manhã bem cedo e continuam sua busca estrada a fora, na tentativa de um dia encontrarem um alento para suas vidas.
☼Interpretação
O "Romance Vidas Secas", de Graciliano Ramos, é uma obra através da qual é retratada a realidade de inúmeras pessoas, vítimas do descaso social e da exploração humana. A obra procura denunciar a injustiça praticada pelos que assumem o poder. O fiscal simboliza a extorsão acometida aos pequenos comerciantes; o Soldado amarelo representa a corrupção policia, evidenciada na prisão arbitrária de Fabiano; O dono da fazenda abandonada é o símbolo do patrão injusto, desumano e medíocre, que suga os funcionários a todo momento, sem nenhum senso de solidariedade e respeito para com o ser humano. Fabiano e sua família são retrato de muitos retirantes que vivem sem nenhuma proteção e sem o reconhecimento de que também são seres humanos. Por isso. Pode-se dizer que Vidas Secas é uma obra que tenta sensibilizar o leitor para as causas sociais, utilizando como instrumento a palavra escrita. Ler Vidas Secas é conhecer um pouco do sertão nordestino e conviver com Fabiano e sua família, questionando o porquê de tanta injustiça social, pois na mesma situação, encontram-se muitos Fabiano e Sinhas Vitórias em busca do mínimo que um ser humano pode querer: que é viver.
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