Publicado em 1967, Quarup é o
livro mais famoso de Antônio Callado. Romance pós-moderno recicla narrativas
míticas e históricas, e fontes temáticas que construíram a imagem negativa do
país como uma nação de preguiçosos, doentes, e ao mesmo tempo elabora uma
imagem otimista de constante invenção do Brasil. Este romance dos anos 60
emerge como voz do Terceiro Mundo - a fala simbólica do pós-colonizado -
liberação de energias, cintilações de otimismo e frustração diante do novo
cenário que se desenrolava no horizonte. Vivia-se o período em que o discurso
pós-colonial se articulava com as falas emancipadoras do Primeiro Mundo - em
que estudantes e intelectuais se revoltavam contra paradigmas teóricos e
políticos anacrônicos.
☼Espaço
Os espaços narrativos são Pernambuco, onde se inicia a ação, Rio de Janeiro, para onde Nando se desloca em busca de ir para o Xingu, e o Xingu esquecido das autoridade, sobretudo Getúlio Vargas, que prometera demarcá-lo.
Antes de chegar ao Xingu passou pelo Rio de Janeiro, onde
conheceu pessoas ligadas ao Serviço de Proteção aos Índios: Ramiro, o chefe,
Vanda, sua sobrinha e secretária, Falua, jornalista e amante de Sônia (por quem
Ramiro alimentava grande paixão), Olavo e Lídia, do Partido Comunista, e
Fontoura, chefe do Posto Capitão Vasconcelos, no Xingu, e grande amigo dos
índios, cuja cultura tentava preservar da destruição causada pela civilização e
pelo progresso. Conhecendo-os, Nando conheceu também desde jovens mulheres como
Vanda até as sensações e “viagens” provocadas pelo cheiro de éter, nas sessões
de lança-perfume de que participava com Ramiro e os outros. Fontoura,
entretanto, revelou-lhe uma dura realidade: a triste situação dos índios, sua
pobreza, doenças, sua condição de condenados pelo Brasil “civilizado” que
investiu sem tréguas, alterando suas vidas, roubando-lhes as terras e a
tranquilidade.
Na parte seguinte do romance, a história tem continuidade
ainda no Xingu, mas muitos anos depois, quando todos se reencontraram, menos Sônia,
numa expedição ao centro geográfico do Brasil. Participou também Francisca, que
voltara da Europa e perdera o noivo Levindo, morto pela polícia. Reacendeu-se
então o amor de Nando, que se descobriu correspondido por Francisca. Dessa vez
as coisas não ficaram no amor platônico, mas chegaram ao contato sexual, no
centro da floresta virgem, em meio a orquídeas coloridas.
Numa visão tradicional e cronológica, o romance e o autor
devem ser encaixados na Terceira Geração Modernista (de 45 aos dias atuais).
Quarup pode ser considerado um romance de formação por, principalmente,
retratar o protagonista, padre Nando, que tenta através da religião, resolver
seus conflitos diante de um mundo conturbado, mas percebe a distância entre a
sua fé e as necessidades do dia a dia, sobretudo as dos não privilegiados, e
diante disso verifica que precisa mudar seus propósitos para buscar sua identidade.
Basicamente, o conflito resume-se na insuficiência, na incapacidade da ação
humana contra a injustiça de uma sociedade.
☼Foco narrativo
Quarup possui foco narrativo em terceira pessoa e seu
narrador é onisciente, uma vez que penetra o "lado de dentro "de suas
personagens, invadindo a intimidade de seus pensamentos, revelando ao leitor o
mundo interior de cada uma delas.
☼Estrutura da obra
O romance está organizado estruturalmente em 7 partes,
assim divididas sob a forma de 7 enormes capítulos:
1. O Ossuário;
2. O Éter;
3. A Maçã;
4. A orquídea;
5. A palavra;
6. A praia;
7. O mundo de Francisca.
Estas partes que compõem a obra de Antonio Callado não
escondem a estreita relação com a realidade histórica. Cerimônia funeral, a
festa do quarup que dá título ao romance de Callado é ritual através do qual a
tribo uilapiti retoma o tempo sagrado da criação da vida associado ao deus
Maivotsinim.
O tempo narrativo, que permeia os 7 capítulos, é o
cronológico e as ações acontecem num período de dez anos: inicia-se no governo
Getúlio Vargas eleito pelo voto direto, na década de 50 e termina em 1964, em
pleno governo militar, logo após a deposição de João Goulart e o início das
torturas e perseguições por parte da junta Militar presidida por Castelo
Branco. Esses dez anos são o cenário brutal de um tempo duro para o Brasil, um
tempo amargo, difícil, em que os homens, quer das Ligas Camponesas, quer pós
golpe militar, tiveram que viver a carne viva de seus sonhos.
☼Espaço
Os espaços narrativos são Pernambuco, onde se inicia a ação, Rio de Janeiro, para onde Nando se desloca em busca de ir para o Xingu, e o Xingu esquecido das autoridade, sobretudo Getúlio Vargas, que prometera demarcá-lo.
☼Resumo
A história, que começa no início do governo Getúlio
Vargas e vai até as primeiras perseguições e torturas impostas pelo regime
militar, toma lugar entre as reservas indígenas na região do Xingu. É lá que o
protagonista, padre Nando, integra-se à realidade conflituosa que aflige a
população local, composta principalmente de índios. A esse cenário somam-se as
instabilidades íntimas que atingem o próprio padre. Após ter se entregado ao
amor carnal e às drogas, ele se apaixona por Francisca, que o recusa. Aos poucos
abdica dos limites da religião, dedicando-se cada vez mais às causas locais.
No tempo em que Nando ainda vivia num mosteiro, sem
animar-se a sair em busca da sua utopia, conheceu Francisca e o noivo desta,
Levindo, jovem estudante que trabalhava junto às nascentes Ligas Camponesas.
Nando passou então a amar platonicamente Francisca e temia não resistir, quando
fosse conviver com os índios, à visão das índias nuas, pecando assim contra o
voto de castidade que fez como sacerdote. Winifred, uma amiga inglesa de Nando,
resolveu tirá-lo do impasse em que se encontrava oferecendo-se a ele. Uma vez
mantidas relações sexuais com uma mulher, Nando estava pronto para enfrentar as
outras que apareceriam no seu caminho e pronto para partir.
Do Rio, Nando partiu para o Xingu. A época era 1954, em
plena fase do atentado contra Lacerda e dos últimos momentos do governo de Getúlio
Vargas. Em Fontoura e em todos no posto do SPI, uma grande expectativa: a
presença de Getúlio, que viria para inaugurar o Parque Nacional do Xingu,
assegurando a preservação das terras indígenas. Enquanto esperavam, ajudavam os
índios a preparar sua grande festa aos mortos: o Quarup, que, entre outras
cerimônias ritualísticas, é constituído de uma grande comilança. Entre lances
de caça, pescas, banhos de índios nus e perseguições de Ramiro à Sônia, chegava
ao Xingu pelo rádio a notícia do suicídio de Getúlio, e morreu em Fontoura a
esperança de ver o posto transformado em parque. Cansada das encrencas dos
homens brancos, Sônia fugiu com Anta, um índio bonito, forte e preguiçoso, para
desespero de Ramiro e Falua.
Cada uma com suas obsessões prosseguiram todos na
expedição. Ramiro, por exemplo, tinha sempre a esperança de encontrar Sônia,
vivendo em alguma tribo. Depois de vários riscos, fome e extravios no meio da
floresta, enfrentando tribos ferozes ou doentes e famintas, o grupo chegou ao
centro geográfico, onde foi fincado um marco. Autodestruído pela bebida, pois
perdera as esperanças de salvar os índios, Fontoura morreu em pleno centro
geográfico, com o rosto sobre o grande formigueiro que corroia o Brasil, desde
o seu coração.
Francisca levou terra do centro geográfico para
Pernambuco, cumprindo uma promessa feita a Levindo, antes da morte deste. Nando
renunciou ao sacerdócio e voltou a Pernambuco com Francisca, que passou a
trabalhar na alfabetização de camponeses. Antes disso, os dois desfrutaram uma
espécie de lua-de-mel no Rio de Janeiro. De volta a Recife, porém, Francisca
resolveu afastar-se, sacrificando-se pela memória de Levindo. Nessa época, a
luta dos camponeses ganhara força, sob o governo de Miguel Arraes, ao qual,
entretanto se opunha Januário, o líder do movimento. Nando resolveu ajudar no
trabalho das ligas. Com o golpe militar de 31 de março de 1964, Goulart foi
deposto e, em Pernambuco, Arraes era afastado. Várias prisões foram feitas, os
líderes perseguidos. Nando foi parar na cadeia, onde sofreu interrogatórios e
torturas mais morais do que físicas, especialmente se confrontadas com o
sofrimento dos camponeses, antigos companheiros de luta. Quando o soltaram,
Francisca havia partido novamente para a Europa. Nando recolheu-se então à sua
casa da praia (herança de seus pais) e se entregou a uma espécie de “apostolado
do amor”. Tendo finalmente aprendido com Francisca a arte de amar, de maneira a
dar prazer à mulher amada, ele agora distribuía amor, fazendo sentirem-se belas
as mulheres mais feias e ensinando as técnicas amorosas a vários “discípulos”
seus. Era pescadores que resolveram segui-lo nessa “nova cruzada”, para grande
espanto e escândalo de seus antigo companheiros de luta política, em vias de
organizarem novamente o movimento revolucionário, desta vez no sertão.
- O resultado do ambicioso projeto de Antônio Callado,
todavia, é problemático. Há no romance um tal acúmulo de ações, muitas das
quais inúteis ou inverossímeis, uma tal profusão de caracteres mal trabalhados,
a começar pela própria psicologia do padre Nando – que passa da castidade ao
furor orgíaco com a maior naturalidade e sem nenhum drama interior – que a
impressão final do leitor é de perplexidade. Como numa montanha-russa, Quarup
alterna vertiginosamente altos e baixos, acertos esplêndidos (algumas cenas
eróticas, as passagens em que os brancos representam o apocalipse para os
indígenas e a construção dramática do impasse do sertanista Fontoura ao se dar
conta que “contatar” os índios era necessariamente destruí-los), e passagens menores,
quase ridículas (Nando assumindo a condição de professor de sexo, a cosmopolita
Sônia fugindo da civilização e embrenhando-se nos confins da floresta com um
índio etc).- Outro aspecto questionável em Quarup é a tentativa do
autor de mesclar um estilo real-naturalista com freqüentes monólogos interiores
e certos delírios verbais que hoje parecem gratuitos. O resultado desta mistura
nem sempre é literariamente equilibrado e convincente.
- A proposição melhor realizada do romance é a
identificação do centro do país não apenas como metáfora da plena integração
nacional, mas também da descoberta de um sentido de vida para cada personagem
que participa da expedição ao Xingu. Estabelece-se, assim, uma ligação
umbilical entre as existências individuais e o destino do Brasil. Por isso, a
morte do sertanista Fontoura com o rosto enfiado dentro do grande formigueiro,
onde ficará o marco do centro do país, é a derrocada simbólica de um sonho de
unidade e de desenvolvimento da nação e um augúrio pessimista a respeito dos
acontecimentos que, na década seguinte (1960), traumatizariam os brasileiros.
No décimo aniversário da morte de Levindo, Nando resolveu
comemorar a data com uma espécie de réplica do Quarup, um banquete com todos os
amigos, pescadores, prostitutas e antigos companheiros de ligas. A cena do grande
jantar (espécie de ritual em que se devorava antropofagicamente a figura de
Levindo) foi simultânea à grande Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Os
participantes da marcha, juntamente com a policia, invadiram a festa: muitos
são presos, alguns fugiram e Nando foi espancado quase até a morte.
Socorrido por uma prostituta amiga e por Manuel Tropeiro,
antigo companheiro de luta, Nando foi levado para a casa do padre Hosana, onde
se recuperou e decidiu partir com Manuel Tropeiro para o sertão, voltar às
lutas. Antes, porém, passou por sua casa, onde encontrou cartas de Francisca, e
a polícia que o espreitava. Conseguindo matar os guardas, despediu-se de Recife
e da própria Francisca, que agora não era mais a mulher de carne e osso. Ela
era o “centro de Francisca”, explicou Nando a Manuel e ao leitor. Como precisou
mudar de nome, adotou o de Levindo e tudo indicava que a história se repetiria.
Entretanto, o romance termina numa nota alta de otimismo no futuro que
aguardava os dois heróis, com Nando vendo “o fio fagulhar ligeiro entre as
patas do cavalo como uma serpente de ouro em relva escura”.
O que deve ser observado
- O quadro histórico – traçado com bastante nitidez – tem
peso direto no desenvolvimento da narrativa, abrangendo acontecimentos que
transcorrem do governo democrático de Getúlio Vargas ao ditatorial de Castelo
Branco. O escritor parece alimentar a idéia de fazer de Quarup uma suma da
sociedade brasileira nas décadas de 1950 e 1960, na linha dos romances
totalizantes do realismo europeu do século XIX.
- Um elemento positivo do romance e que funciona como
representação artisticamente fiel da realidade é a “desalienação”(Ferreira
Gullar) de Nando, que deixa de sonhar com uma utopia indianista e passa a lutar
pelos desvalidos nordestinos. Este processo traduz claramente as mudanças que
se verificam na Igreja, na década de 1960, com a crescente politização de seus
sacerdotes.
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