Quarup



Quarup

Publicado em 1967, Quarup é o livro mais famoso de Antônio Callado. Romance pós-moderno recicla narrativas míticas e históricas, e fontes temáticas que construíram a imagem negativa do país como uma nação de preguiçosos, doentes, e ao mesmo tempo elabora uma imagem otimista de constante invenção do Brasil. Este romance dos anos 60 emerge como voz do Terceiro Mundo - a fala simbólica do pós-colonizado - liberação de energias, cintilações de otimismo e frustração diante do novo cenário que se desenrolava no horizonte. Vivia-se o período em que o discurso pós-colonial se articulava com as falas emancipadoras do Primeiro Mundo - em que estudantes e intelectuais se revoltavam contra paradigmas teóricos e políticos anacrônicos.
 
Numa visão tradicional e cronológica, o romance e o autor devem ser encaixados na Terceira Geração Modernista (de 45 aos dias atuais). Quarup pode ser considerado um romance de formação por, principalmente, retratar o protagonista, padre Nando, que tenta através da religião, resolver seus conflitos diante de um mundo conturbado, mas percebe a distância entre a sua fé e as necessidades do dia a dia, sobretudo as dos não privilegiados, e diante disso verifica que precisa mudar seus propósitos para buscar sua identidade. Basicamente, o conflito resume-se na insuficiência, na incapacidade da ação humana contra a injustiça de uma sociedade.



☼Foco narrativo

Quarup possui foco narrativo em terceira pessoa e seu narrador é onisciente, uma vez que penetra o "lado de dentro "de suas personagens, invadindo a intimidade de seus pensamentos, revelando ao leitor o mundo interior de cada uma delas.


☼Estrutura da obra

O romance está organizado estruturalmente em 7 partes, assim divididas sob a forma de 7 enormes capítulos:


1. O Ossuário;

2. O Éter;

3. A Maçã;
4. A orquídea;
5. A palavra;
6. A praia;
7. O mundo de Francisca.

Estas partes que compõem a obra de Antonio Callado não escondem a estreita relação com a realidade histórica. Cerimônia funeral, a festa do quarup que dá título ao romance de Callado é ritual através do qual a tribo uilapiti retoma o tempo sagrado da criação da vida associado ao deus Maivotsinim.

(Suicídio de Getúlio, Renuncia de Jânio, Ditadura)
☼Tempo

O tempo narrativo, que permeia os 7 capítulos, é o cronológico e as ações acontecem num período de dez anos: inicia-se no governo Getúlio Vargas eleito pelo voto direto, na década de 50 e termina em 1964, em pleno governo militar, logo após a deposição de João Goulart e o início das torturas e perseguições por parte da junta Militar presidida por Castelo Branco. Esses dez anos são o cenário brutal de um tempo duro para o Brasil, um tempo amargo, difícil, em que os homens, quer das Ligas Camponesas, quer pós golpe militar, tiveram que viver a carne viva de seus sonhos.


☼Espaço


Os espaços narrativos são Pernambuco, onde se inicia a ação, Rio de Janeiro, para onde Nando se desloca em busca de ir para o Xingu, e o Xingu esquecido das autoridade, sobretudo Getúlio Vargas, que prometera demarcá-lo.



☼Resumo

A história, que começa no início do governo Getúlio Vargas e vai até as primeiras perseguições e torturas impostas pelo regime militar, toma lugar entre as reservas indígenas na região do Xingu. É lá que o protagonista, padre Nando, integra-se à realidade conflituosa que aflige a população local, composta principalmente de índios. A esse cenário somam-se as instabilidades íntimas que atingem o próprio padre. Após ter se entregado ao amor carnal e às drogas, ele se apaixona por Francisca, que o recusa. Aos poucos abdica dos limites da religião, dedicando-se cada vez mais às causas locais.

No tempo em que Nando ainda vivia num mosteiro, sem animar-se a sair em busca da sua utopia, conheceu Francisca e o noivo desta, Levindo, jovem estudante que trabalhava junto às nascentes Ligas Camponesas. Nando passou então a amar platonicamente Francisca e temia não resistir, quando fosse conviver com os índios, à visão das índias nuas, pecando assim contra o voto de castidade que fez como sacerdote. Winifred, uma amiga inglesa de Nando, resolveu tirá-lo do impasse em que se encontrava oferecendo-se a ele. Uma vez mantidas relações sexuais com uma mulher, Nando estava pronto para enfrentar as outras que apareceriam no seu caminho e pronto para partir.
Antes de chegar ao Xingu passou pelo Rio de Janeiro, onde conheceu pessoas ligadas ao Serviço de Proteção aos Índios: Ramiro, o chefe, Vanda, sua sobrinha e secretária, Falua, jornalista e amante de Sônia (por quem Ramiro alimentava grande paixão), Olavo e Lídia, do Partido Comunista, e Fontoura, chefe do Posto Capitão Vasconcelos, no Xingu, e grande amigo dos índios, cuja cultura tentava preservar da destruição causada pela civilização e pelo progresso. Conhecendo-os, Nando conheceu também desde jovens mulheres como Vanda até as sensações e “viagens” provocadas pelo cheiro de éter, nas sessões de lança-perfume de que participava com Ramiro e os outros. Fontoura, entretanto, revelou-lhe uma dura realidade: a triste situação dos índios, sua pobreza, doenças, sua condição de condenados pelo Brasil “civilizado” que investiu sem tréguas, alterando suas vidas, roubando-lhes as terras e a tranquilidade.

(Índios no Xingu)


Do Rio, Nando partiu para o Xingu. A época era 1954, em plena fase do atentado contra Lacerda e dos últimos momentos do governo de Getúlio Vargas. Em Fontoura e em todos no posto do SPI, uma grande expectativa: a presença de Getúlio, que viria para inaugurar o Parque Nacional do Xingu, assegurando a preservação das terras indígenas. Enquanto esperavam, ajudavam os índios a preparar sua grande festa aos mortos: o Quarup, que, entre outras cerimônias ritualísticas, é constituído de uma grande comilança. Entre lances de caça, pescas, banhos de índios nus e perseguições de Ramiro à Sônia, chegava ao Xingu pelo rádio a notícia do suicídio de Getúlio, e morreu em Fontoura a esperança de ver o posto transformado em parque. Cansada das encrencas dos homens brancos, Sônia fugiu com Anta, um índio bonito, forte e preguiçoso, para desespero de Ramiro e Falua.
Na parte seguinte do romance, a história tem continuidade ainda no Xingu, mas muitos anos depois, quando todos se reencontraram, menos Sônia, numa expedição ao centro geográfico do Brasil. Participou também Francisca, que voltara da Europa e perdera o noivo Levindo, morto pela polícia. Reacendeu-se então o amor de Nando, que se descobriu correspondido por Francisca. Dessa vez as coisas não ficaram no amor platônico, mas chegaram ao contato sexual, no centro da floresta virgem, em meio a orquídeas coloridas.
Cada uma com suas obsessões prosseguiram todos na expedição. Ramiro, por exemplo, tinha sempre a esperança de encontrar Sônia, vivendo em alguma tribo. Depois de vários riscos, fome e extravios no meio da floresta, enfrentando tribos ferozes ou doentes e famintas, o grupo chegou ao centro geográfico, onde foi fincado um marco. Autodestruído pela bebida, pois perdera as esperanças de salvar os índios, Fontoura morreu em pleno centro geográfico, com o rosto sobre o grande formigueiro que corroia o Brasil, desde o seu coração.
Francisca levou terra do centro geográfico para Pernambuco, cumprindo uma promessa feita a Levindo, antes da morte deste. Nando renunciou ao sacerdócio e voltou a Pernambuco com Francisca, que passou a trabalhar na alfabetização de camponeses. Antes disso, os dois desfrutaram uma espécie de lua-de-mel no Rio de Janeiro. De volta a Recife, porém, Francisca resolveu afastar-se, sacrificando-se pela memória de Levindo. Nessa época, a luta dos camponeses ganhara força, sob o governo de Miguel Arraes, ao qual, entretanto se opunha Januário, o líder do movimento. Nando resolveu ajudar no trabalho das ligas. Com o golpe militar de 31 de março de 1964, Goulart foi deposto e, em Pernambuco, Arraes era afastado. Várias prisões foram feitas, os líderes perseguidos. Nando foi parar na cadeia, onde sofreu interrogatórios e torturas mais morais do que físicas, especialmente se confrontadas com o sofrimento dos camponeses, antigos companheiros de luta. Quando o soltaram, Francisca havia partido novamente para a Europa. Nando recolheu-se então à sua casa da praia (herança de seus pais) e se entregou a uma espécie de “apostolado do amor”. Tendo finalmente aprendido com Francisca a arte de amar, de maneira a dar prazer à mulher amada, ele agora distribuía amor, fazendo sentirem-se belas as mulheres mais feias e ensinando as técnicas amorosas a vários “discípulos” seus. Era pescadores que resolveram segui-lo nessa “nova cruzada”, para grande espanto e escândalo de seus antigo companheiros de luta política, em vias de organizarem novamente o movimento revolucionário, desta vez no sertão.
(Ritual do Quarup)

No décimo aniversário da morte de Levindo, Nando resolveu comemorar a data com uma espécie de réplica do Quarup, um banquete com todos os amigos, pescadores, prostitutas e antigos companheiros de ligas. A cena do grande jantar (espécie de ritual em que se devorava antropofagicamente a figura de Levindo) foi simultânea à grande Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Os participantes da marcha, juntamente com a policia, invadiram a festa: muitos são presos, alguns fugiram e Nando foi espancado quase até a morte.
Socorrido por uma prostituta amiga e por Manuel Tropeiro, antigo companheiro de luta, Nando foi levado para a casa do padre Hosana, onde se recuperou e decidiu partir com Manuel Tropeiro para o sertão, voltar às lutas. Antes, porém, passou por sua casa, onde encontrou cartas de Francisca, e a polícia que o espreitava. Conseguindo matar os guardas, despediu-se de Recife e da própria Francisca, que agora não era mais a mulher de carne e osso. Ela era o “centro de Francisca”, explicou Nando a Manuel e ao leitor. Como precisou mudar de nome, adotou o de Levindo e tudo indicava que a história se repetiria. Entretanto, o romance termina numa nota alta de otimismo no futuro que aguardava os dois heróis, com Nando vendo “o fio fagulhar ligeiro entre as patas do cavalo como uma serpente de ouro em relva escura”.

O que deve ser observado

- O quadro histórico – traçado com bastante nitidez – tem peso direto no desenvolvimento da narrativa, abrangendo acontecimentos que transcorrem do governo democrático de Getúlio Vargas ao ditatorial de Castelo Branco. O escritor parece alimentar a idéia de fazer de Quarup uma suma da sociedade brasileira nas décadas de 1950 e 1960, na linha dos romances totalizantes do realismo europeu do século XIX.
- O resultado do ambicioso projeto de Antônio Callado, todavia, é problemático. Há no romance um tal acúmulo de ações, muitas das quais inúteis ou inverossímeis, uma tal profusão de caracteres mal trabalhados, a começar pela própria psicologia do padre Nando – que passa da castidade ao furor orgíaco com a maior naturalidade e sem nenhum drama interior – que a impressão final do leitor é de perplexidade. Como numa montanha-russa, Quarup alterna vertiginosamente altos e baixos, acertos esplêndidos (algumas cenas eróticas, as passagens em que os brancos representam o apocalipse para os indígenas e a construção dramática do impasse do sertanista Fontoura ao se dar conta que “contatar” os índios era necessariamente destruí-los), e passagens menores, quase ridículas (Nando assumindo a condição de professor de sexo, a cosmopolita Sônia fugindo da civilização e embrenhando-se nos confins da floresta com um índio etc).- Outro aspecto questionável em Quarup é a tentativa do autor de mesclar um estilo real-naturalista com freqüentes monólogos interiores e certos delírios verbais que hoje parecem gratuitos. O resultado desta mistura nem sempre é literariamente equilibrado e convincente.
- Um elemento positivo do romance e que funciona como representação artisticamente fiel da realidade é a “desalienação”(Ferreira Gullar) de Nando, que deixa de sonhar com uma utopia indianista e passa a lutar pelos desvalidos nordestinos. Este processo traduz claramente as mudanças que se verificam na Igreja, na década de 1960, com a crescente politização de seus sacerdotes.
- A proposição melhor realizada do romance é a identificação do centro do país não apenas como metáfora da plena integração nacional, mas também da descoberta de um sentido de vida para cada personagem que participa da expedição ao Xingu. Estabelece-se, assim, uma ligação umbilical entre as existências individuais e o destino do Brasil. Por isso, a morte do sertanista Fontoura com o rosto enfiado dentro do grande formigueiro, onde ficará o marco do centro do país, é a derrocada simbólica de um sonho de unidade e de desenvolvimento da nação e um augúrio pessimista a respeito dos acontecimentos que, na década seguinte (1960), traumatizariam os brasileiros.

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